segunda-feira, julho 09, 2007

 
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Era a primeira a vez que via o pôr-do-sol em dias; mesmo a visão borrada das barras a frente, fora de foco, não atrapalhavam. Podia finalmente vislumbrar seu espetáculo preferido. Não tinha mais ambições, não tinha mais sonhos, haviam roubado seus direitos mais humanos. Haviam roubado o tempo.
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Não mais sonhava com vôos pelo azul infinito ou tão pouco com a chuva batendo suave em seu rosto. Agora, apenas se esforçava para borrar mais e mais a barra em sua frente.
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Já não via mais o luar, não apreciava as estrelas, o cheiro da relva e do orvalho, que passavam pelas barras, todo dia, logo cedo, serviam apenas para recordar que vida era o que acontecia lá fora enquanto ela padecia.
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Perdera, já há muito, a real noção da dura e pesada realidade ao seu redor. Não sabia há quanto haviam removido os grilhões, mas seu peso ainda fincava-lhe os pés no chão e, incapaz de mover-se com o peso, permanecia ali prostrada.
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Um belo dia, acordou e percebeu que as algemas já haviam se ido e, ao tentar se lembrar quando foram removidas, percebeu que já não vivia com elas, mas o pulso ainda oprimido reprimindo o batimento de vida, o sopro que lhe restava.
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Perdera a memória e com ela sua casa, família e cachorro. Perdera o ar, o amor e a compaixão. Perdera tanto, que reduzida a nada não havia mais nada para perder.
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E quando um dia a libertassem, sabia que já era tão institucionalizada, tão amarga, tão oca, que mesmo que sua casca saísse andando pelos campos, visse os pássaros, sentisse a chuva, já não sentiria mais nada, não faria mais nada, não amaria a mais ninguém.

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